A relação grosseira e o regime

A democracia precisa tanto da palavra como do voto, e da palavra que vale, que transporta uma esperança de sentido, um compromisso de verdade, confiança em quem a traz. Nos tempos que correm já estamos muito em falta com esse valor da palavra, cada vez mais longe do lugar onde devíamos estar. Como o clima perturbado pelo aquecimento global, o espaço público e a democracia estão comprometidas.

Os avisos foram sendo feitos, há décadas que se chama a atenção para um desmoronamento das bases discursivas de democracia. A esfera pública era elitista, por isso a luta de classes teve sempre dificuldades com ela e com razão. Mas hoje a realidade é outra. Não faz grande sentido criticar a esfera pública quando ela está de rastos, tomada pelas redes sociais, invadida pela sua lógica de voracidade e pós-verdade. Hoje, os social media estão para a direita radical como o aquecimento global para os incendiários e tudo arde. E este aquecimento global toca-nos a todos como uma escalada.

André Ventura tem uma obsessão pela podridão do regime. O populismo do Chega, que é apenas uma expressão automática de Ventura, vive da descoberta do podre, onde há e onde não há, tão obsessiva que, de tanta procura da podridão do regime, escorrega no que bem merece ser chamado um chão podre. Foram os hambúrgueres e logo a seguir as mil e tal viagens de Marcelo Rebelo Sousa, tudo falso, grosseiramente longe de qualquer verdade. E é importante fixar este adjectivo – grosseiro significa a rudeza, a falta da paciência do cuidado, uma falta deliberada de dedicação, muito aquém dos mínimos exigíveis, que manifesta, sobretudo, uma falta de consideração e respeito, um menosprezo. Na grosseira apreciação da verdade, é a própria ideia de verdade e o seu valor que apodrecem. Ao Chega basta-lhes a convicção de que tudo está podre e o resto são danos colaterais, os meios a justificarem os fins.

Esta grosseria com a verdade, sem fazer o caminho das pedras, que nos assola tem o mesmo fundo da falta de maneiras na relação com os outros que vamos vendo chegar às televisões, aos cafés. As redes sociais estão a saltar para a rua, com interpelações, até intimidações. E é o que Ventura encoraja quando, indo por estes dias a Espanha, elogia e agradece a onda de violência contra imigrantes e sugere ao líder do Vox que alcance pôr o Primeiro-Ministro de Espanha na cadeia. A grosseria que desrespeita a verdade é a mesma que desrespeita pessoas, instituições, órgãos eleitos, até relações diplomáticas. Sejamos claros, nem a democracia nem as bases do respeito do nosso país por si próprio sobrevivem à miséria da normalização destas acções políticas. O discurso de Ventura não é normalizável em democracia.

Era evidente que a conversa, já velha, sobre a legitimidade do politicamente incorrecto tinha que ver com esta libertação das relações grosseiras que relativizam os meios diante da vontade dos fins, e que se desobrigam dos caminhos diante do que se quer a todo o custo. Talvez por inconsciência, não faltaram intelectuais a defender que era a liberdade de expressão que estava em causa, pressuposto fundamental dos regimes livres. Dois dedos de conversa bem argumentada deveriam ter conduzido à pergunta: mais livres para faltar à verdade e intimidar? Agora é uma conversa vencida, o que devia ressoar no espírito de muitos intelectuais públicos portugueses.

Com sondagens a animá-lo, Ventura ainda vai ser candidato presidencial.  Se for, será certamente para defender a mudança da Constituição e do próprio regime, a passagem a um sistema presidencialista, fundamentalmente ligado à ideia de liderança carismática. Para chegar lá, é a podridão do regime que ele quer que os portugueses imaginem existir em cada esquina. E visa-se o Presidente em funções a preparar o caminho da podridão.

Preocupa-me profundamente que diante destes futuros possíveis que se desenham, os partidos políticos que se reveem nos valores constitucionais não consigam apresentar um ou uma candidata presidencial comum que defenda o regime, permanecendo não sei bem por que razões numa lógica incrivelmente impermeável ao que está a suceder. Vemos cada partido com as suas candidaturas, todas decerto muito respeitáveis, mas sem qualquer possibilidade de eleição. Como é possível não haver o esforço de uma concertação de esforços, entre partidos e a sociedade civil, no sentido de uma frente de defesa do regime? No estado em que estamos, o programa não seria divisivo! Urgia um ou uma candidata que opusesse à política da relação grosseira a delicada e firme atenção à verdade e aos outros. Pensando em comparações que chegam a todas as pessoas, por que havemos de aceitar a relação grosseira para o nosso país que não aceitaríamos nas nossas casas, nos lugares onde trabalhamos, onde quer que nos assumamos responsáveis?  Porquê este conformismo que bem pode entregar o regime à fatalidade?

Repito, o programa não é divisivo. É honrar a promessa ao país de uma delicada e firme relação com a verdade, com os cidadãos, com os estrangeiros, connosco próprios.