Cinco motivos para a revisão da Constituição

A Constituição não é um código normativo ao serviço de alguns partidos políticos, refém de um momento histórico cristalizado no tempo. São inúmeros os desafios sociais, económicos e culturais que convidam a uma séria revisão do texto constitucional, no sentido de o aproximar da realidade social actual e de abrir caminho a reformas estruturais que livrem Portugal de décadas de estagnação.

O primeiro motivo, e o que maior destaque tem recebido, é o de que a Constituição está obsoleta e evidencia um claro viés ideológico. É muito importante que as Constituições sejam alvo de ajustes à medida que a sociedade se altera, especialmente se o texto em causa tiver excesso de detalhe programático. Claro que não se espera que uma Constituição mude com o espírito dos tempos ou que ande ao sabor das sucessivas maiorias parlamentares, mas é fundamental encontrar o equilíbrio subtil capaz de acautelar as mudanças drásticas da sociedade.

Contrariamente ao que desejariam aqueles que vêem a Constituição como uma relíquia petrificada, imune ao debate e ao tempo, ela deve ser um instrumento vivo ao serviço das exigências contemporâneas. O estilo cunhado pelo contexto pós-revolucionário e pelo predomínio das ideias socialistas é completamente inapropriado e afronta as diversas sensibilidades políticas que têm lugar no espaço público.

Não, Portugal não tem um destino traçado rumo a uma sociedade socialista e, como tal, o refinamento terminológico do documento deve começar por eliminar essa expressão segmentária que ainda consta no preâmbulo. Quem gosta do preâmbulo acusa os críticos de picuinhice estética, argumentando que aquela expressão não altera em nada a realidade. Então, se aquela expressão é apenas uma espécie de capricho estético para satisfação dos seus apologistas (os pretensos donos da democracia), qual será o problema de a deixar cair em favor da neutralidade? Afinal, a letra da constituição é para levar a sério, ou é conforme os apetites?

Em suma, conseguir fazer frente a intimidações ideológicas e tornar a Constituição mais sucinta e focada em princípios gerais será um passo importante para revigorar a confiança cívica e para reduzir a distância entre o poder político e os cidadãos.

Em segundo lugar, o pleno direito à organização política sem preconceitos ideológicos é também um bom motivo para debater uma revisão profunda. A CRP estabelece limites que, à primeira vista, parecem proteger a democracia, mas que também podem levantar questões sobre a verdadeira soberania dos cidadãos. A proibição de partidos considerados “fascistas” (Artigo 46.º), por exemplo, parece clara, mas o termo é vago e susceptível de ser instrumentalizado por quem pressente fascismo em qualquer discurso que resvale ligeiramente para o patriotismo, para a defesa de maior controlo de fronteiras ou para um certo tradicionalismo nos valores (até a simples oposição às insanidades woke).

A proteção da democracia pode ser assegurada através da proibição de movimentos que recorram manifestamente à violência, evitando-se, deste modo, restrições ambíguas à participação política. Não esqueçamos também que é altamente paradoxal e questionável que se conceda carta branca ao comunismo – que deixa um rasto sanguinário de crimes massivos contra a humanidade, tortura e repressão, inseparável da sua lógica totalitária –, permitindo-lhe actuar sem restrições, enquanto outras correntes enfrentam limites severos e discriminação por presunção de más intenções.

O terceiro motivo é a necessidade de dinamizar a economia nacional, nomeadamente através da valorização do triângulo de colaboração entre Estado, empresas e sociedade civil, reconhecendo que cada um tem um papel próprio e essencial. O modelo de economia mista inscrito na Constituição (Artigo 80.º) resulta de compromissos históricos que não correspondem à realidade do país e deixam implícito um certo paternalismo que subalterniza a iniciativa privada.

O conceito de “economia mista” é vago e não define adequadamente os limites da intervenção do Estado na economia, o que pode gerar incertezas no campo do investimento. Uma revisão que clarifique o papel do Estado, das empresas e da sociedade civil na economia contribuiria para um desenvolvimento mais equilibrado e sustentável, alinhado com as necessidades contemporâneas do país.

Um quarto motivo é a necessidade de consagrar mecanismos jurídicos robustos que assegurem a protecção integral da privacidade dos cidadãos, em resposta aos avanços tecnológicos. A expansão galopante da recolha e tratamento de dados pessoais no espaço digital, incluindo a sua utilização com fins políticos, revela lacunas significativas nas actuais garantias constitucionais portuguesas. A tecnologia mudou profundamente a forma como comunicamos, compramos, trabalhamos e consumimos informação, e a Constituição deve reflectir essa nova realidade, prevenindo qualquer utilização indevida de dados por actores internos ou por entidades supranacionais, cuja intervenção possa comprometer a soberania do Estado e a plena vigência dos direitos fundamentais no contexto digital contemporâneo.

Por fim, um quinto motivo que não deve ser menosprezado, é a necessidade de impedir restrições altamente lesivas para os cidadãos e para a economia em casos de estado de emergência. Uma alteração útil seria estabelecer limites temporais claros, de forma que qualquer estado de emergência tenha uma duração máxima inicial e só possa ser prorrogado mediante critérios objectivos, evitando assim prolongamentos motivados por arbitrariedade ou julgamento erróneo por parte dos responsáveis políticos.

Paralelamente, seria importante definir direitos inalienáveis que não possam ser suspensos, mesmo em situações excepcionais, garantindo que a vida, a integridade física e liberdades fundamentais, como expressão, deslocação e reunião, permaneçam protegidas, frente às retóricas do medo. Talvez assim fosse mais fácil conciliar a necessidade de reacção rápida a crises com a protecção dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (Artigo 138.º). Ainda assim, a morosidade da justiça continua a ser o principal calcanhar de Aquiles em situações de grave atropelo da constitucionalidade.

Estas são apenas algumas pistas sobre como a Constituição poderia acompanhar melhor os desafios contemporâneos nacionais do século XXI. O seu núcleo permanece sólido, mas os obstáculos ao desenvolvimento serão mais facilmente superados se o texto for mais leve, moderno e atento à sociedade real, devolvendo-lhe autenticidade e proximidade com a vida concreta dos portugueses.