Do Maio de 68 ao “Bloquons Tout”: Macron perante a rua e a história

Aux Champs-Élysées, au soleil, sous la pluie…” – cantava Joe Dassin em 1969, evocando o passeio feliz por uma Paris suspensa entre nostalgia e promessa. Hoje, a mesma avenida é palco de barricadas, incêndios e detenções em massa. O romantismo deu lugar ao desencanto; a canção à sirene da polícia. Meio século depois, a França regressa ao seu ponto de origem: a rua como espaço de contestação e luta aberta com o poder.

Emmanuel Macron nomeou na última semana o seu compagnon de route Sébastien Lecornu como primeiro-ministro, o quarto em apenas doze meses. A queda de François Bayrou, vítima de uma moção de censura esmagadora, expôs a fragilidade de um regime que já não consegue manter estabilidade mínima. O novo chefe de governo, jovem tecnocrata de 38 anos, foi escolhido mais pela lealdade ao Eliseu do que por força própria. Tem diante de si duas missões quase impossíveis: aprovar o orçamento de 2026 (mesmo depois de suspender a medida mais polémica, a eliminação de dois feriados) num Parlamento fragmentado e conter uma revolta social que se alastra pelo país sob o lema “Bloquons Tout” – bloquear tudo.

A França tem memória. Em Maio de 68, estudantes e trabalhadores pararam o país. Foram dez milhões em greve, barricadas erguidas em universidades, fábricas e transportes. O general De Gaulle chegou a ausentar-se do território para se aconselhar com os militares em Baden-Baden. O Estado parecia à beira do colapso. E, no entanto, a crise terminou com eleições antecipadas que deram vitória esmagadora à direita gaullista. O sistema político resistiu, mas a sociedade mudou profundamente: liberalização cultural, reformas sociais, ascensão de uma juventude irreverente.

O “Bloquons Tout” inspira-se nesse imaginário. Não há hoje líderes carismáticos como Cohn-Bendit, nem sindicatos capazes de coordenar milhões, mas existe uma lógica de bloqueio difuso que paralisa estradas, refinarias, aeroportos e estações ferroviárias. Paris ardeu nos últimos dias: 159 detenções só na capital, confrontos na Bastilha, voos cancelados em Orly e Charles de Gaulle. Mais de 80 mil polícias foram mobilizados. O slogan é claro: “Ni austérité, ni compromis”. Nem austeridade, nem compromissos.

Macron enfrenta assim a mesma contradição que corroeu os seus antecessores. François Hollande terminou um mandato apático, incapaz de responder ao terrorismo, à estagnação económica e ao descontentamento social. Nicolas Sarkozy, antes dele, viu-se enredado em escândalos políticos e processos judiciais que ainda hoje mancham a memória do seu quinquénio. Jacques Chirac, já nos anos 90, também navegou entre crises e paralisia. E, se recuarmos mais, até Mitterrand acabou prisioneiro de compromissos que limitaram a sua ambição. A França é o país onde cada presidente começa como salvador e termina como réu ou desapontamento.

Macron não é exceção. Eleito em 2017 como promessa de renovação centrista, acabou por encarnar a arrogância tecnocrática que sempre jurou combater. O movimento dos “Coletes Amarelos” revelou cedo a distância entre o Eliseu e a rua. Agora, com apenas 15% de aprovação popular, enfrenta uma contestação ainda mais ampla. O seu discurso europeu – mais autonomia estratégica, mais defesa comum, mais integração – colide com a sua fragilidade interna. A Alemanha e a Itália observam com inquietação: uma França enfraquecida significa uma União Europeia fragilizada, precisamente no momento em que Trump, regressado à Casa Branca, expõe a clivagem com a Europa e a guerra da Rússia contra a Ucrânia intensifica-se.

A analogia com Maio de 68 deve, porém, ser feita com cautela. A França de 1968 tinha crescimento económico robusto, pleno emprego juvenil e uma sociedade em transformação. A de 2025 vive com dívida pública acima dos 110% do PIB, crescimento anémico e uma crise identitária marcada pela questão migratória. O mal-estar não é apenas político; é estrutural. Os serviços públicos ressentem-se de cortes sucessivos, as reformas das pensões e do mercado de trabalho acumulam descontentamento, e a juventude não vê horizontes. É um país envelhecido, cansado, que se revê mais no protesto do que na esperança.

O presidencialismo da V República, criado para evitar a instabilidade da IV, parece agora reproduzir as mesmas patologias. Um sistema construído em torno de maiorias sólidas tornou-se refém da fragmentação parlamentar. Quatro primeiros-ministros em doze meses é mais do que uma estatística: é a prova de que o motor gaullista está gripado. A “França doente do presidencialismo”, como já se lhe chama, vive uma ingovernabilidade que lembra os anos 50.

Não é por acaso que Marine Le Pen e Jordan Bardella, da extrema-direita, denunciam o “caos macronista” e pedem eleições antecipadas. Jean-Luc Mélenchon, pela esquerda, acusa Macron de trocar cabeças mas manter a mesma política de austeridade. O centro presidencial está isolado, sem base social nem maioria parlamentar. A rua aproveita o vazio, e a história ensina-nos que, em França, quando a rua se levanta, o poder treme.

O paralelo com 1968 não está apenas nos métodos, mas na sensação de esgotamento. Se em 68 o gaullismo parecia gasto, hoje é o presidencialismo que parece ter chegado ao limite. O risco é que a resposta não seja uma vitória esmagadora da direita clássica, mas sim da extrema-direita. A dissolução da Assembleia, caso Macron se veja forçado a convocar legislativas, pode abrir as portas a Marine Le Pen no poder – cenário que parecia impossível há uma década e que hoje é a grande sombra da política francesa, se não já uma certeza.

A França sempre foi laboratório da Europa. Em 1968 antecipou a revolta cultural do Ocidente; em 1992 liderou o debate sobre Maastricht; em 2005 disse “não” à Constituição Europeia; em 2018 foi palco da contestação à globalização com os “Coletes Amarelos”. Em 2025, pode estar a inaugurar uma nova fase: a implosão do modelo presidencial e, com ela, do modelo europeu como o conhecemos.

Joe Dassin cantava nos Champs-Élysées que “il y a tout ce que vous voulez” – há tudo o que se possa desejar. Hoje, os parisienses encontram ali apenas o reflexo de uma crise política, social e económica. A rua voltou a desafiar o Palácio do Eliseu. A grande questão é se Emmanuel Macron terá força para resistir como De Gaulle resistiu em 1968 – ou se, pelo contrário, este será o momento em que a V República revela o seu verdadeiro fim.