Quando a realizadora vencedora de um Óscar Chloé Zhao estudou Shakespeare pela primeira vez no seu colégio interno britânico, a jovem aluna chinesa nem sequer falava inglês.
Por isso, tem sido um longo percurso até ao seu último filme, “Hamnet”, um drama poético de época que especula sobre a história de vida do próprio William Shakespeare e é um dos primeiros favoritos aos Óscares.
“Foi tão difícil”, disse à agência France-Presse (AFP) a premiada cineasta de “Nomadland” sobre os seus tempos de escola.
O professor de Inglês de Zhao colocava textos clássicos à sua frente e dizia: “Fica depois das aulas todos os dias. Vou ajudar-te página a página”, recordou.
O trabalho árduo parece ter valido a pena.
Apresentado no domingo no Festival Internacional de Cinema de Toronto, a mais importante “montra” de cinema na América do Norte e plataforma de lançamento dos títulos com aspirações aos Óscares, “Hamnet” preenche as lacunas do pouco que sabemos sobre William Shakespeare, a esposa Agnes, a família e uma tragédia que inspirou, sem dúvida, a sua maior obra.
Com Paul Mescal e Jessie Buckley nestes principais papéis e ainda sem estreia anunciada em Portugal, trata-se da adaptação ao cinema de um romance de Maggie O’Farrell, que se baseou nas provas de que os Shakespeare tiveram um filho chamado Hamnet — um nome que, segundo os estudiosos, soaria indistinguível de “Hamlet” na Inglaterra da era isabelina.
O romance e o filme especulam que Agnes (Buckley) encorajou William (Mescal) a mudar-se sozinho para Londres e a perseguir os seus sonhos no teatro, confiante de que o amor deles era suficientemente forte para aguentar a separação.
Mas numa época em que a morte e a tristeza espreitavam a cada esquina, sobretudo devido ao parto e à peste, o casamento distancia-se emocionalmente, para além de fisicamente.
“O romance de Maggie era como um poema”, disse Zhao à AFP.
“Vê-los apaixonar-se e unirem-se, separarem-se… é uma guerra civil interna que todos enfrentamos à medida que crescemos e amadurecemos”.
“Perseguir o pôr do sol”
A interpretação de Zhao adota uma abordagem mais cronológica do que o romance e não poupa em representações angustiantes do luto que deixaram muitos na plateia de Toronto em lágrimas.
É o culminar de um trajeto impressionante para a cineasta, desde uma auto-intitulada “estudante de intercâmbio esquisita” no Brighton College, em Inglaterra, até aos mais elevados patamares do cinema global.
Zhao recebeu os primeiros grandes elogios no interior do cinema independente norte-americano com o sucesso de “The Rider” (2017), antes de “Nomadland” (2020), um drama semificcional sobre os habitantes de estrada do Oeste americano, conquistar três Óscares: Melhor Filme, Realização e Atriz (Frances McDormand).
“Hamnet” marca um regresso decisivo para Zhao a um cinema mais intimista e intelectual depois de um desvio mal avaliado para as super produções de Hollywood com o fracasso dos super-heróis da Marvel “Eternals – Eternos”.
Com 43 anos, Zhao disse ao público da estreia em Toronto que passou os seus “trintas” a fazer “filmes que contemplam o horizonte e o pôr do sol” que eram “muito amplos e expansivos”.
Agora, “nos meus ‘quarentas’, quando passo por uma crise de meia-idade difícil, percebi que estava a fugir de mim mesma, muito à semelhança do Will no filme”, explicou.
Ainda assim, parece que a dedicação do seu professor de Inglês continuou a moldar a identidade de Zhao como cineasta.
Noah Jupe (dos filmes “Um Lugar Silencioso”), que interpreta um ator que interpreta Hamlet no palco do mítico teatro The Globe, disse que o papel da sua personagem ainda estava a ser reescrito e retrabalhado bem durante a produção.
Apesar disso, Zhao insistiu para que memorizasse “cada diálogo” da peça, caso viesse a ser necessário.
“Foi um grande fardo, mas estava entusiasmado e feliz”, disse o jovem de 20 anos à AFP.