
Há 30 anos, Srebrenica tornou-se o primeiro genocídio na Europa a ser legalmente reconhecido por um tribunal internacional desde a Segunda Guerra Mundial. O seu nome é agora sinónimo de falha na proteção, de paralisia das instituições internacionais e do custo devastador de desviar o olhar.
Transporto em mim essas lições de uma forma inesperada. Já com mais de cinquenta anos, regressei à universidade para fazer o mestrado em Ação Humanitária no ISCTE-IUL, em Lisboa. Nas aulas de Direitos Humanos e Direito Internacional Humanitário, lecionadas pela reputada diplomata e membro da Comissão do Direito Internacional das Nações Unidas, a professora Patrícia Galvão Teles, aprendi os princípios que ainda hoje moldam a nossa compreensão de tais atrocidades.
Não eram regras abstratas, mas um prisma através do qual as tragédias de hoje podem ser vistas com maior clareza. E, hoje, esse prisma revela-se dolorosamente relevante. Quando o termo “genocídio” é debatido em relação a Gaza, ou quando a guerra da Rússia na Ucrânia desafia os próprios fundamentos do direito internacional, os ecos de Srebrenica — os seus fracassos e as suas lições — são impossíveis de ignorar.
O massacre de Srebrenica não foi uma erupção espontânea de ódio. Foi meticulosamente planeado: a desumanização sistemática de toda uma população, a preparação de esquadrões de morte, a ocultação de crimes e, por último, a negação da realidade.
O Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia confirmou isto mesmo, posteriormente, em processos judiciais exaustivos, demonstrando que o genocídio não é uma explosão irracional de violência, mas um projeto orquestrado pelo Estado. O presidente Radovan Karadzic e o general Ratko Mladic foram finalmente condenados a prisão perpétua, décadas depois de milhares de vidas terem sido eliminadas e de a responsabilidade moral da comunidade internacional ter sido posta em causa.
Srebrenica ensina-nos que a multietnicidade pode ser usada como arma. Antes da guerra, a Bósnia era uma experiência europeia rara: muçulmanos, judeus, católicos e cristãos ortodoxos viviam lado a lado, e a sua coexistência formava um rico tecido social, cultural e económico. Escolas, mercados, teatros e cafés eram espaços onde as diferenças eram celebradas, não temidas.
Tal como historiadores como Noel Malcolm documentaram, a Bósnia era um lugar onde a coexistência inter-religiosa estava tão profundamente enraizada que as famílias cristãs, muitas vezes, mantinham um tacho onde nunca havia sido cozinhada carne de porco, para poderem partilhar uma refeição se as suas visitas fossem judeus ou muçulmanos (um detalhe também registado em histórias orais recolhidas pelo antropólogo Tone Bringa). A etnia era um ativo, não um fardo.
O jornalista e escritor italiano Paolo Rumiz recorda como os soldados italianos na Bósnia ficaram surpreendidos ao verem raparigas muçulmanas que, no verão, usavam saias curtas, comiam presunto sem preocupações e não frequentavam regularmente a mesquita, espelhando um Islão capaz de atuar como um ‘amortecedor’ protetor, respeitando a coexistência enquanto resistia às pressões extremistas de outras paragens e que nunca quisemos ter na Europa.
Essas comunidades, realça Rumiz, não se pareciam em nada com os estereótipos redutores que a Europa tinha delas. Até mesmo os judeus de Sarajevo, que haviam chegado cinco séculos antes graças à hospitalidade otomana, lutaram ao lado dos muçulmanos e tiveram dificuldade em explicar essa coexistência aos seus familiares em Jerusalém ou noutras partes de Israel. O que perdemos, o que nos terá escapado das mãos?
Falamos de vestígios do antigo Império Otomano, um legado onde diferentes nacionalidades e religiões coexistiam, onde as pessoas falavam a mesma língua mas acreditavam em deuses diferentes, escreviam de forma diferente e viviam em comunidades sobrepostas.
Para quem estava habituado à clareza e simplicidade do Estado-nação moderno, tal complexidade parecia ingerível. No entanto, em todo o mundo, muitos territórios possuem exatamente esta riqueza de línguas, tradições e religiões – muitas vezes, porém, preferimos ignorá-la.
Na Bósnia-Herzegovina, os cidadãos comuns pensavam que seria impossível separar essas populações entrelaçadas. No entanto, alguns líderes políticos decidiram que isso era possível e perseguiram esse objetivo através do único meio que conheciam: a violência. Foi aqui, na Bósnia-Herzegovina, que a guerra e a limpeza étnica atingiram o seu trágico apogeu.
A diversidade tornou-se o alvo. Atores políticos e militares transformaram a coexistência em medo e suspeita. Foram traçados mapas, divididos territórios e fixadas identidades de forma rígida, transformando a vida quotidiana numa luta dilacerada.
A proposta de paz inicial do ministro dos Negócios Estrangeiros português, José Cutileiro, incluindo os primeiros mapas étnicos na altura da guerra, visava negociar um cessar-fogo, mas acabou, inadvertidamente, por realçar a fragilidade da coexistência multiétnica. Estes mesmos mapas foram depois usados para justificar reivindicações separatistas e divisões territoriais.
Os Acordos de Dayton, embora tenham posto fim ao derramamento de sangue, congelaram e institucionalizaram essas divisões. A República da Bósnia-Herzegovina tornou-se um Estado frágil, com as suas instituições triplicadas ao longo de linhas étnicas: escolas, polícia, tribunais e sistemas de saúde, todos divididos. As crianças cresceram a aprender histórias e línguas que as separavam dos seus vizinhos.
Hoje, perigos semelhantes surgem na Ucrânia, onde as negociações de cessar-fogo e as propostas territoriais da Rússia codificam divisões em vez de promoverem a reconciliação. A História avisa-nos que mapas traçados com base em linhas étnicas podem tornar-se instrumentos de violência se não forem acompanhados pela proteção firme dos civis e por uma governança inclusiva.
O bloqueio e o bombardeamento de Gaza exemplificam como alimentos, água e medicamentos foram usados como armas por Israel para impor a rendição. Padarias, hospitais e comboios de ajuda humanitária foram deliberada e repetidamente atingidos por ataques israelitas, cujos padrões estão amplamente documentados.
Essas não são medidas de segurança – são estratégias de terror executadas sob o pretexto da autoridade estatal. A incapacidade da comunidade internacional de definir, condenar e processar tais atos permite que a impunidade persista, minando a credibilidade de todas as estruturas humanitárias.
Srebrenica também ensina uma lição urgente sobre a violência liderada pelo Estado. Não existe uma definição legal de “Estado terrorista”. Um país pode assassinar cientistas, arrasar cidades, bloquear populações e privar, sistematicamente, civis de alimentos e medicamentos, e, ainda assim, participar em organismos internacionais com impunidade. A fome não é um dano colateral; é uma arma deliberada. Quando atores não-estatais empregam tais táticas, estas são universalmente reconhecidas como “terrorismo”. Quando são os Estados a usá-las, o direito internacional não dispõe nem da linguagem nem dos mecanismos para o nomear.
Na Bósnia-Herzegovina, o fracasso dos capacetes azuis holandeses, a inadequação da proteção da ONU e a paralisia política permitiram que atrocidades se desenrolassem com quase total impunidade. Nos conflitos atuais, estas lições continuam a ser prementes. Os civis em Gaza ou no leste da Ucrânia enfrentam a violência com proteção limitada. Palavras, resoluções e condenações são insuficientes se não se traduzirem em salvaguardas exequíveis para aqueles que estão em risco.
A responsabilidade moral da Europa continua a ser fundamental. Srebrenica foi um fracasso europeu e as suas cicatrizes – físicas e psicológicas – perduram. Defender o direito internacional humanitário, garantir a proteção dos civis e intervir de forma decisiva quando necessário não são ideais opcionais, mas obrigações que estruturam a credibilidade da Europa. De Gaza à Ucrânia, estas responsabilidades estão a ser novamente postas à prova. A tentação de tratar todas as partes como moralmente equivalentes, de permitir que a conveniência geopolítica ofusque o sofrimento humano, é tão perigosa hoje como era há 30 anos.
Srebrenica lembra-nos a dimensão humana que muitas vezes se perde na análise geopolítica. Os testemunhos revelam não só os horrores do genocídio, mas também a força duradoura da memória, da cultura e da dignidade pessoal. É fundamental preservar estas narrativas. São antídotos para a negação e a indiferença, e lembram aos decisores políticos que por trás de cada mapa, proposta de cessar-fogo ou mesa de negociações estão vidas reais, famílias e comunidades em risco.
As atrocidades que se desenrolam hoje em Gaza e na Ucrânia não podem ser reduzidas a estatísticas ou cálculos estratégicos. Civis estão presos em ciclos de violência, fome deliberada e privação, e o custo humano da guerra ressoa de forma desconfortável ante a experiência bósnia. A intervenção precoce, assente no respeito pela vida civil e pela coexistência étnica, é essencial para evitar que a história se repita.
Volvidos 30 anos, Srebrenica não é apenas um evento histórico – é um prisma para compreendermos o presente. As suas lições são dolorosamente claras: a coexistência multiétnica é um valor que vale a pena proteger; a impunidade encoraja a repetição; e o direito internacional deve ser fortalecido para enfrentar as táticas modernas de terror. Justiça protelada é justiça negada. Paz não garantida é paz traída. A memória e as lições aprendidas só têm significado se fundamentarem as ações presentes.
O sofrimento em Gaza, a destruição na Ucrânia, o silêncio nos corredores diplomáticos são ecos da Bósnia que exigem atenção. Se não os ouvirmos, corremos o risco não só de repetir a história, mas também de trair os ideais que outrora fizeram da Europa um lugar onde a coexistência era possível. A Europa deve agir não como um observador passivo, mas como um garante das regras que ajudou a moldar. Defender o direito internacional humanitário, insistir na responsabilização e defender os vulneráveis não são exercícios idealistas, são imperativos nascidos dos fracassos do passado.
A fome é terrorismo. O silêncio é cumplicidade. A humanidade multiétnica nunca mais deve ser tratada como um problema a gerir, mas sim como um tesouro a defender. Os ecos de Srebrenica assim o exigem.