Por uma estratégia nacional de inovação para as ciências da vida

Há anúncios de Bruxelas que passam despercebidos, mas este não devia ser um deles: a Comissão Europeia lançou, no início de julho, a sua estratégia para tornar a Europa o destino mais atrativo do mundo para as ciências da vida até 2030. O plano assenta em três frentes: otimizar o ecossistema de I&D, acelerar o acesso ao mercado (incluindo um futuro EU Biotech Act) e aumentar a adoção das inovações, com mais de €10 mil milhões/ano já mobilizados a partir do orçamento europeu. É uma janela rara de ambição e de recursos.

A própria Comissão reconhece os “sinais preocupantes”: menos ensaios clínicos na UE, dificuldades de crescimento e escalabilidade, uma regulação demasiado restritiva e um fosso em capital de risco. Ao mesmo tempo, anuncia medidas concretas: regulação mais “responsiva à inovação”, sandboxes regulatórias, contratação pública pró-inovação e um EU Biotech Hub operacional como balcão único. Se houver execução séria e comprometida, isto muda o jogo. Se não houver, será mais uma oportunidade perdida para a Europa.

Para o nosso país, a oportunidade é clara: passar de país “barato e competente” a país que lidera segmentos específicos da cadeia de valor. Temos âncoras industriais e científicas (Hovione, BIAL, Bluepharma; Champalimaud, i3S, IMM, UC-Biotech), um SNS com escala de dados e uma trajetória de crescimento em ensaios clínicos (subidas relevantes em 2021–2023). Falta transformar estes ativos num “Sistema Portugal” orientado para resultados económicos.

Se existir uma visão estratégica para a inovação em saúde e ciências da vida, Portugal pode posicionar-se como plataforma europeia para dados de saúde, ensaios clínicos e bioprodução especializada, convertendo ciência em exportações, empregos qualificados e fiscalidade. Se hesitarmos, seremos apenas consumidores das inovações alheias, pagando a fatura da dependência.

O que os sinais nos mostram é um perigoso predomínio da gestão de curto prazo sobre uma ideia ambiciosa de futuro a médio e longo prazo. O nosso SNS é uma conquista civilizacional inequívoca. Mas hoje está refém da sua própria crise: a falta de médicos, as listas de espera, a pressão orçamental e os sucessivos casos mediatizados consomem quase totalmente a energia dos decisores. E enquanto se apagam fogos diários (que têm, indubitavelmente, de ser apagados), sobra muito pouco espaço para estruturar o futuro deste setor.

Assumindo, desde já, que não sou um especialista na indústria da saúde e ciências da vida, proponho, porém, uma reflexão estruturada sobre políticas públicas e iniciativas privadas de inovação que cumpram este desígnio de transformar Portugal num líder neste movimento europeu. Para isso, recolhendo também contributos de investigadores e agentes económicos do setor, sugiro sete “movimentos” concertados:

  1. Ser first mover no EHDS. A regulação do European Health Data Space já entrou em vigor. Portugal deve criar rapidamente a entidade nacional de acesso a dados de saúde (data access body), com processos ágeis, governança robusta e APIs para investigadores e empresas. Dados interoperáveis e reutilizáveis são o “novo ouro”.
  2. Sandbox regulatória no INFARMED. Antecipar o EU Biotech Act com um piloto nacional para terapias avançadas, diagnósticos digitais e digital therapeutics. Objetivo: decisões previsíveis e prazos-alvo públicos para autorizações e ensaios de menor risco, articulados com a Agência Europeia do Medicamento e redes europeias.
  3. “Portugal Clinical Trials Fast-Track”. Duplicar o número de ensaios até 2028, focando em oncologia, neurodegenerativas e doenças raras. Criar equipas dedicadas nos principais hospitais (públicos e privados), acordos-quadro com entidades de investigação e incentivos ao recrutamento de doentes (literacia, navegação de doentes, consentimento digital).
  4. Rede nacional de testbeds hospitalares. Alinhar com a estratégia europeia para acelerar a contratação pública de inovação (pré-comercial e compra pública). Alguns hospitais do SNS e da rede social ou privada podem funcionar como launch customers para soluções nacionais de medtech e digital health, com métricas de desfecho clínico e custo-benefício.
  5. Apostar na bioprodução e nas CDMOs (Contract Development and Manufacturing Organizations). Investir em capacidade de produção certificada em Boas Práticas de Fabrico (GMP), ancorando cadeias europeias de fornecimento e reshoring. Portugal já tem reputação industrial; falta massa crítica e especialização.
  6. Capital paciente e co-investimento corporativo. Criação de fundos públicos e privados com foco em clinical translation e market access, atraindo farmacêuticas e scaleups de medtech para parcerias com universidades e startups. A estratégia europeia aponta precisamente para desbloquear investimento público e privado.
  7. Talento e mobilidade científica. Tech visas ágeis para perfis críticos (bioprocessos, qualidade, assuntos regulamentares), programas de doutoramento em empresas biotecnológicas ou sabáticas cruzadas hospital-empresa-academia. Sem pessoas, não há pipeline.

Se continuarmos presos à gestão diária, perderemos a oportunidade de transformar a saúde e as ciências da vida em motores da economia nacional. E o paradoxo é cruel para Portugal: temos empresas de referência, centros científicos de excelência e profissionais reconhecidos mundialmente. Mas não temos ambição estratégica.

Escrevo este texto não como especialista em saúde ou ciências da vida, mas como alguém que acredita que a inovação deve ser a maior política económica do nosso país. Bruxelas abriu a porta. Os recursos estão disponíveis, as regras estão a mudar, o momento é agora. A pergunta é simples: vamos atravessar essa porta ou vamos ficar parados à entrada?