Portugal discute incêndios, mas arde em evasão fiscal

No pouco tempo que dedico à televisão, assisto à BBC World News. Não sou fluente na língua de Shakespeare e assumo dificuldade na compreensão das mensagens transmitidas. Prefiro isso a assistir, até à exaustão, a temáticas como os incêndios e o encerramento de urgências de obstetrícia.

Atrever-me-ia a propor um estudo comparativo que, por um lado, quantificasse as horas usadas na abordagem dos supracitados temas, nos últimos dois anos, e por outro o usado na abordagem do tema da economia paralela. Um grupo de académicos de topo realizaria então, um trabalho sobre os impactos reais na saúde em Portugal provocados pelas urgências de obstetrícia encerradas e pela fuga aos impostos.

Sem o estudo, arriscaria dizer, que a segunda tem um impacto maior na saúde dos portugueses do que a primeira. Diria mais, na saúde, na justiça, na segurança, na habitação, resumindo, em Portugal.

Não é tema que interesse aos políticos e a comunicação social raramente lhe pega porque, naturalmente, tem de abordar os temas que interessam aos seus telespectadores, ouvintes ou leitores. É uma pescadinha de rabo na boca. Os políticos não gostam do tema porque não dá votos. Os cidadãos não compreendem que dos impostos vem a capacidade do Estado actuar, regular e apoiar quem mais precisa, logo não lhe dão valor. A comunicação social não aborda o tema porque os cidadãos não lhe dão valor, logo os políticos não o consideram.

O que falta na saúde em Portugal? É mais dinheiro para o SNS ou um papel mais eficaz do Estado na promoção de hábitos de vida saudáveis (desporto, alimentação) desde a infância, nas escolas, nos postos de trabalho, na sociedade em geral? Não faltará, sobretudo, organização?

Porque temos tantos incêndios? É devido à falta de bombeiros e de aviões, é responsabilidade dos incendiários ou é sobretudo falta de fiscalização do Estado relativamente às regras já existentes?

Com total humildade para aceitar outros pontos de vista, considero que o principal papel do Estado deve ser o de regular. O Estado não deve sufocar o papel inovador e dinâmico dos empreendedores, de quem quer inovar, de quem arrisca. Mas tem de zelar para que as regras que regem a nossa vida em sociedade sejam cumpridas. Quando não o faz viola vários princípios Constitucionais, desde logo, o Princípio da Igualdade, pois se “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”, então, se o Estado não assegura o cumprimento uniforme das regras, uns podem cumpri-las e outros não, o que promove desigualdade material na aplicação do direito e a partir daí em tudo o resto. Mas violará também, o Princípio do Estado de direito democrático e o Princípio da legalidade.

Repito-o muito porque é central nesta análise do papel do Estado: Não há justiça social sem justiça fiscal, não há Estado sem impostos, se queremos baixar impostos cada um tem de pagar os seus!

Salvaguardando honrosas excepções, que existem por mérito dos seus bons dirigentes, várias das inspecções do Estado não funcionam, e a da AT é disso um exemplo. Piorou nos últimos 15 anos.

É mais fácil uma divisão de inspecção em Portugal ter acesso a movimentos bancários em Espanha do que no nosso país. Como é possível que os dados relativamente à cortiça recolhida num ano ou ao azeite, às uvas, ao vinho, aos subsídios entre outros, não estejam automaticamente acessíveis à AT, para efeitos de pagamento de impostos?

O Estado a omitir informação ao Estado?!

E o espaço virtual? A internet? O que faz a AT quando, numa plataforma digital, um jovem ensina como se ganham milhões com o patrocínio de casinos online, se têm carros e casas de luxo, viagens de sonho, assim como que por magia, em pouco tempo? Como deve actuar um inspector tributário quando suspeita que aquele jovem não estará a pagar os devidos impostos, sobre aquele fabuloso rendimento, que publicamente anuncia?

Na realidade, nada pode fazer, pois caso contrário, arrisca-se a ser processado por cibercrime e acesso ilegal à base de dados da AT!

São tantos os exemplos das ineficiências que cansa pensar neles. Lutamos contra nós próprios. Criamos entraves ao nosso trabalho. Criamos ferramentas piores que as anteriores. A formação é miserável. Quem é que se consegue motivar a trabalhar assim, ainda por cima sem pessoal, sem organização, sem meios, sem autoridade e já com muita idade (56 anos de média etária no balanço social de 2023)?

A centralização é um problema adicional. Quase 40% trabalhadores da AT estão em Lisboa. O modelo de organização do trabalho é do século XIX. A centralização tem gerado ineficiência, entropias aos processos, má gestão de recursos humanos e materiais e pior qualidade no serviço prestado.

Passamos demasiado tempo a responder a estatísticas. O Estado a trabalhar para o Estado! Muitos, a trabalhar para justificar a existência do cargo de uns poucos.

Parte do tempo é utilizado a olhar para aplicações informáticas que não funcionam. Os professores queixam-se do excesso de trabalho administrativo que prejudica a actividade lectiva. Os inspectores têm de se preocupar mais com a estatística do que com o combate à economia paralela. Os empresários consomem mais tempo a tratar de burocracias do que a dinamizar os seus negócios. Afinal, o que é que está a funcionar bem?

A única medida exigida, pela Troika, a 17 de Maio de 2011, no reforço dos meios do Estado, foi para Inspecção Tributária e Aduaneira. O que fez Portugal? Chamou o “Chico Esperto”, que fingiu que contratou 1000 inspectores, colocou-os a fazer tudo menos inspecção e, no final, o número de inspectores, no terreno, baixou para menos de metade.

Como se combate a corrupção sem falar na AT? A corrupção está ligada à fuga aos impostos pois, para ela existir, tem de existir dinheiro fora do circuito, facto que também não faz parte do discurso político em Portugal.

O Estado tem de assumir o seu principal papel. Para regular, as inspecções têm de funcionar. Só assim cumpriremos a Constituição da República, pois só assim existirá Estado de direito democrático, Igualdade e Legalidade. Fazendo-o, estaremos muito mais perto de resolver os problemas dos incêndios de verão, da habitação, da saúde, da justiça, da educação e da segurança.